Terceiro artigo da série que explora o contexto das experiências não-ordinárias no Brasil e como elas impactam nossa população. Todos os dados foram coletados e relacionados a partir de estudos feitos pelo grupo de Neurociência das Crenças e Valores do Instituto D´or de Pesquisa e Ensino.
Autora Giovanna Bortolini
Imagine que alguém te pergunta: “Você já teve uma experiência de amor tão intensa que se destacou de todas as outras?” Parece uma pergunta simples, certo? Mas será que todo mundo entende do mesmo jeito? Será que quem responde está pensando no mesmo tipo de experiência de quem pergunta? Essa é uma questão muito mais importante do que parece, especialmente quando a ciência tenta investigar experiências subjetivas e, muitas vezes, difíceis de descrever, como as chamadas experiências não ordinárias (NOEs). No artigo anterior, foram divulgados dados relevantes sobre a interpretação de tais experiências na população brasileira. Desta vez, nos aprofundamos no processo sobre o que é necessário para coletar esses dados.
Pesquisadores do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), em parceria com a Universidade da Califórnia, Santa Barbara, EUA trouxeram para o Brasil o Inventário de Experiências Não Ordinárias (INOE), criado pela professora Ann Taves e colegas. O INOE é um questionário que mapeia as NOEs definidas como vivências que pessoas consideram incomuns, marcantes ou fora da rotina. A proposta é capturar essas vivências de forma neutra, ou seja, sem recorrer a rótulos religiosos, sobrenaturais ou clínicos. Mas aqui entra uma questão fundamental: será que as pessoas realmente entendem o que essas perguntas querem dizer? Será que, ao responder, elas estão pensando no tipo de experiência que os pesquisadores querem estudar?
COMO O ESTUDO FOI FEITO?
Para responder a isso, o Grupo de Neurociência das Crenças e Valores do IDOR conduziu um estudo com mais de 1.200 brasileiros, de diferentes regiões, idades e perfis demográficos. O objetivo foi adaptar e validar culturalmente o INOE, verificando se a população compreende corretamente as perguntas. Ao todo foram testados 69 itens ou perguntas que descreviam experiências, tanto que vieram do questionário original (do grupo de Santa Bárbara), quanto itens adicionais levantados pela equipe do IDOR baseado em um levantamento da literatura dessas experiências no Brasil.
O processo funcionou assim: a equipe de pesquisa desenvolveu uma “interpretação pretendida” para cada item, ou seja, o que era esperado que os participantes entendessem em relação a cada experiência com base na literatura científica. Depois, pelo menos 20 participantes por experiência responderam online se já tinham vivido cada experiência e descreveram o que ocorreu. Essas descrições foram avaliadas por quatro especialistas treinados que julgavam se a resposta refletia corretamente a interpretação esperada. Se 80% ou mais dos participantes interpretam corretamente, o item era considerado válido. Se ficasse entre 60% e 80%, o item passava por ajustes e era testado de novo. Já se menos de 60% entendessem, o item era reformulado mais a fundo com mudanças de vocabulário ou estrutura e reavaliado. Cada item podia ser revisado até cinco vezes. Se mesmo assim não atingisse 80% de compreensão, era descartado.
O QUE OS RESULTADOS MOSTRAM SOBRE A CLAREZA DAS PERGUNTAS?
Os resultados mostram que nem sempre é fácil transformar experiências subjetivas em palavras claras. Perguntas sobre coisas como “receber uma mensagem que parece ter vindo de fora” ou “ter um insight profundo que mudou sua visão de mundo” foram justamente algumas das perguntas que mais geraram dúvidas. E até perguntas aparentemente simples como “ter déjà vu” ou “sentir amor de forma marcante” mostraram um problema curioso: muitas pessoas que disseram “não” na verdade não tinham entendido bem a pergunta. Ou seja, talvez elas até tenham vivido aquilo, mas não reconheceram a experiência no jeito como a pergunta foi formulada.
Portanto, se as perguntas não são claras, a ciência corre o risco de produzir dados distorcidos. Experiências comuns podem parecer super raras ou o contrário, parecerem mais frequentes do que realmente são. Por exemplo: se muita gente não entende bem o que é “experiência de fascínio ou maravilhamento que se destacou de todas as outras experiências do tipo que eu já tive”, esse tipo de experiência pode parecer raro quando, na verdade, está apenas escondido atrás de uma pergunta mal formulada.
Por outro lado, perguntas vagas ou ambíguas podem gerar respostas infladas ou exageradas, dando a falsa impressão de que determinadas experiências são universais. Esse processo de validação dos itens é muito mais do que um detalhe técnico. É o que garante que a gente está realmente medindo experiências humanas e não mal-entendidos. No fim das contas a comunicação é uma ponte.
Quando ela falha, o que deveria ser uma janela para entender a experiência humana vira um grande telefone sem fio. E por falar em telefone sem fio… você conhece alguém que já tenha escutado vozes emitidas por algo que, aparentemente, não existe? No próximo artigo da série, vamos nos aprofundar nas experiências não-ordinárias de cunho sensorial. Acompanhe.
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