Segundo artigo da série que explora o contexto das experiências não-ordinárias no Brasil e como elas impactam nossa população. Todos os dados foram coletados e relacionados a partir de estudos feitos pelo grupo de Neurociência das Crenças e Valores do Instituto D´or de Pesquisa e Ensino.
Autora Luiza Tavares
Com o apoio da John Templeton Foundation e em parceria com o Ciência Pioneira, uma pesquisa conduzida pelo Grupo de Neurociência das Crenças e Valores do Instituto D’or de Pesquisa e Ensino (IDOR) coletou o relato de 5.117 brasileiros de todas as regiões do Brasil para investigar situações e experiências individuais que fogem do cotidiano. No artigo anterior, foram divulgados dados relevantes sobre a prevalência das experiências não-ordinárias (NOEs) na população brasileira utilizando o Inventário de Experiência Não Ordinárias. Desta vez, apresentamos os contextos em que são vividas e o sentido que se elabora a partir delas.
EM QUE MOMENTOS AS EXPERIÊNCIAS SE MANIFESTAM?
Na contramão do que os estigmas podem sugerir, tais experiências não acontecem necessariamente em momentos de fragilidade ou confusão mental. Mais da metade dos participantes afirmou estar acordado e plenamente alerta durante o episódio. Apenas uma minoria, cerca de 4%, relatou ter vivido a experiência sob influência de álcool ou drogas. Também não se trata, na maioria dos casos, de episódios vivenciados em hospitais ou situações de doença: a maioria das experiências aconteceu em casa, no cotidiano, muitas vezes a sós.
Outros fatores chamam atenção. Cerca de 38% dos participantes disseram ter vivido a experiência quando estavam sozinhos, o que levanta questões sobre a interioridade e o silêncio como cenários férteis para o extraordinário. Além disso, 10% relataram ter passado por isso em contextos religiosos ou espirituais, o que evidencia o papel da cultura e da crença na forma como interpretamos o inusitado. Em contraste, uma parcela semelhante afirmou que suas experiências não se encaixavam em nenhuma categoria proposta, o que sugere que nosso vocabulário e modelos de interpretação talvez ainda sejam limitados diante da complexidade do que é vivido.
E COMO AS PESSOAS REAGEM A ESSES EVENTOS?
A resposta é: depende. Para quase metade dos entrevistados, o sentimento foi de alegria, paz ou transformação positiva. Muitos relataram que a experiência trouxe clareza, propósito, ou reforçou valores pessoais. Por outro lado, uma parte significativa vivenciou medo, confusão ou sofrimento. Esses dados mostram que o impacto emocional está intimamente ligado ao sentido que cada um atribui ao que aconteceu. Quem acredita que viveu um “sinal divino” ou uma manifestação espiritual tende a reagir melhor do que quem interpreta o episódio como algo negativo, patológico ou ameaçador.
Esse ponto, aliás, é central para os pesquisadores. Segundo o estudo, a forma como interpretamos uma experiência extraordinária pode determinar se ela se torna um recurso de fortalecimento ou uma fonte de sofrimento. A cultura, com seus mitos, religiões, crenças e estigmas, molda as lentes com que enxergamos o invisível. E, no Brasil, onde tradições como o espiritismo, o catolicismo popular e as religiões de matriz africana convivem com discursos científicos e seculares, há espaço tanto para acolhimento quanto para julgamento.
O QUE OS DADOS REVELAM SOBRE A PREVALÊNCIA DAS EXPERIÊNCIAS NA POPULAÇÃO BRASILEIRA?
A pesquisa identificou uma curiosa dualidade nos relatos: aproximadamente metade das pessoas considera que suas experiências têm um caráter espiritual ou religioso. Ao mesmo tempo, quase a mesma proporção acredita que a ciência poderá um dia explicar o que vivenciaram. Essa convivência entre fé e racionalidade parece ser uma marca do imaginário brasileiro contemporâneo, onde o inexplicável não precisa ser imediatamente excluído, apenas compreendido de outro modo.
Outro dado relevante é o papel da comunidade. Para muitos, amigos e familiares reagiram de forma positiva ou neutra ao relato da experiência. Poucos sentiram-se julgados. Isso contrasta com o que costuma ocorrer em ambientes médicos ou psiquiátricos, onde experiências não-ordinárias são, muitas vezes, vistas como sintomas. Os pesquisadores propõem, por isso, uma revisão de paradigmas clínicos que ainda patologizam essas vivências, ignorando seu contexto, significado e função.
Não se trata, claro, de negar que determinadas percepções possam estar ligadas a transtornos mentais. Mas o estudo mostra que nem toda “experiência estranha” é um sinal de doença. Muitas vezes, trata-se de um evento isolado, espontâneo, com valor simbólico ou espiritual para quem o vivenciou. Ignorar isso seria empobrecer a compreensão do ser humano em sua complexidade.
Dentro deste cenário, surge uma pergunta metodológica. Num estudo tão complexo e com tantas elaborações possíveis, como garantir que todos os participantes entenderam o que foi perguntado no inventário? Descubra no próximo artigo da série.
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